Magnificent Beggar Land é o título de um livro de Ricardo Soares de Oliveira que fala de Angola desde a Guerra Civil. Nunca o li mas o título ficou-me gravado e agora tem completa aplicação à realidade que me rodeia. Ao andar pela cidade de Deli, a imensidão de pedintes com que nos deparamos a toda a hora e, principalmente, nos semáforos não me deixa indiferente.
Este é um tema sobre o qual queria escrever já há algum tempo mas a sensibilidade do mesmo e a impotência perante este problema estrutural da sociedade indiana, fez-me adiar a escrita para tentar perceber melhor.
Já tinha tido contacto com a extrema pobreza em Moçambique e em Angola, mas nunca tinha convivido com tantas mãos estendidas por dia... Em Moçambique, o contexto era rural numa autêntica missão e parecia que havia uma solidariedade comunitária em cada aldeia e nas famílias. Em Angola, esta solidariedade entre uma comunidade alargada também se podia descortinar com mais atenção. Além disso e o que mais me impressionou pela positiva em Luanda foi, penso não estar enganada, nunca ter visto ninguém de mão estendida. De facto, não havia um metro quadrado da cidade de Luanda sem homens, mulheres e crianças a tentar vender as coisas mais inacreditáveis. Ia desde o diário Jornal de Angola, às bebidas, comidas, cabides, livros, "tupperwares", pilhas, enfim... Tantas e tantas vezes, resolvi várias compras que tinha de fazer através da janela do carro. Isto mostra o espírito empreendedor do povo angolano, ao mesmo tempo que revela a extrema pobreza que se esconde por detrás deste mercado informal no meio do caótico trânsito.
Em Deli, os pedintes são uma realidade muito dura e pesada, no dia a dia. As políticas públicas para enfrentar o problema parecem não manifestar vontade de o resolver e, por isso mesmo, não são muito populares. Houve uma medida que parece ter sido posta em prática de pôr os pedintes em casas de acolhimento só para pedintes. Mas a oposição veio logo dizer que as ditas casas não eram mais do que autênticas cadeias e que o que o Governo deveria fazer era capacitar os pedintes com algum saber que os permitisse sustentar as suas vidas com dignidade.
Em Deli é criminalizado o acto de ser apanhado a pedir e como não se investe nem tempo, nem dinheiro na reabilitação dos pedintes, o problema vai crescendo a olhos vistos. Pelo que li, entre 10 e 11 milhões de crianças continuam sem ir à escola. Fala-se em "gangs" organizados que raptam crianças e que as usam neste "mercado" ou "negócio" de pedintes. Já ouvi falar até falar em autênticas máfias. Um problema gravíssimo e estrutural deste país, o futuro do país.
Ao princípio, andava com pacotes de bolachas para dar às crianças e mulheres, que são a maioria, mas a quantidade de pedintes era tal que ficava sempre na dúvida se estava a fazer algum bem. Depois, algumas crianças protestavam se não lhes dava dinheiro ou se a quantidade de rupias não era a que queriam. E parei durante imenso tempo, mas de coração apertado pela impotência.
Estou a ler o livro do Professor Muhammad Yunus de que já falei, Banker to the Poor. Consegui ter algum esclarecimento e concordar com as suas ideias. Fala da capital do Bangladesh, Dacca, mas que me parece que tem igual aplicação a Deli. Aqui ficam as partes que seleccionei com a devida ressalva da tradução ter sido feita por mim.
"Qualquer pessoa que guie um carro na cidade de Dacca é assediada de ambos os lados por pedintes profissionais a pedir esmola.
Porque não dar? Com alguns cêntimos podemos aliviar a nossa consciência. (...)
Quem dá fica com a sensação de que fez alguma coisa. Mas de facto não fez nada.
Dar dinheiro é uma maneira de nos escudarmos a enfrentar a verdadeira questão. Dar uma esmola é uma maneira de pensarmos que fizemos alguma coisa e de nos sentirmos bem por termos partilhado a nossa riqueza com os pobres. Mas de facto estamos a evitar o problema. Limitámos-nos a abafar o problema com o nosso dinheiro e a virarmos-lhe as costas. Mas durante quanto tempo?
Dar esmola aos pedintes não é uma solução nem de longo nem de curto prazo. O pedinte irá para o próximo carro, para o próximo turista e fará o mesmo. E eventualmente, voltará a quem lhe deu dinheiro e de quem se tornou dependente. Se queremos resolver o problema de forma honesta temos de nos envolver e começar o processo. Se quem dá a esmola abrir a porta do carro e perguntar ao pedinte qual é o problema, qual é o seu nome, que idade tem, se procurou ajuda médica, que preparação tem, então quem iria dar esmola talvez possa ser uma ajuda. Mas dar esmola é apenas uma maneira de lhe dizer para desaparecer e para o deixar em paz.
Para quem recebe, a caridade pode ter efeitos devastadores. Rouba a dignidade ao pedinte, e retira-lhe o incentivo de trabalhar para ganhar dinheiro. Torna o pedinte passivo e satisfeito a pensar que "só tenho que me sentar aqui de mão estendida e tenho o meu ganha pão." (...)
Quando vejo uma criança a pedir, resisto ao impulso natural de dar. Mas a verdade é que eu, às vezes, dou esmola, faço-o quando vejo uma tremenda miséria humana - alguma doença, uma mãe com uma criança a morrer - nessas situações eu não consigo impedir que a minha mão vá ao meu bolso para dar alguma coisa. Mas luto contra este impulso o mais que é possível. (...)
A pobreza pode ser erradicada durante a nossa vida. Só precisamos da vontade política. (...)"